fonte: O Globo
Entre os mais de 21 milhões de casos de infectados pelo coronavírus no mundo, há aqueles cujas características contribuíram para a compreensão da Covid-19. Se tornaram os chamados estudos de caso, entraram para a literatura médica e ajudaram a desvendar mistérios da pandemia. São histórias de sofrimento e luta, de pessoas quase sempre mantidas no anonimato, que intrigaram médicos e acabaram por iluminar aspectos obscuros da pandemia.
O primeiro caso é considerado emblemático porque apresenta muitas das características da forma grave de Covid-19. Além disso, tem complicações sugestivas de peculiaridades da infecção pelo coronavírus.
A professora de clínica médica da UERJ, Márcia Ladeira, uma das coordenadoras do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe/UERJ), diz que o caso de Ruth Pereira de Barros, de 69 anos, será tema de um estudo científico.
Dona Ruth considera importante contar sua história e aceitou ser identificada porque quer ajudar outras pessoas a não sofrerem como ela.
Infecção misteriosa
Em 7 de abril, dona Ruth começou a tossir, teve febre alta e a passou a sentir falta de ar. Idosa, hipertensa e com hipotireoidismo, ela está no grupo considerado de maior risco para a doença. Quando a falta de ar piorou e ela deixou de se alimentar, a família buscou tratamento. Uma tomografia revelou uma pneumonia sugestiva de Covid-19, mas dona Ruth não foi internada.
Em 14 de abril, porém, a falta de ar se tornou intolerável e ela procurou atendimento no Hupe. Já estava com insuficiência respiratória aguda por Covid-19. Recebeu oxigênio suplementar até o dia 17, quando piorou ainda mais e foi intubada.
O caso evoluiu num padrão que depois se mostrou frequente na Covid-19 grave. Dona Ruth teve infecções bacterianas associadas à ventilação mecânica. Outros órgãos, como os rins, começaram a ser atingidos pelos distúrbios associados à inflamação deflagrada pela Covid-19.
Entre meados de abril e início de maio, sofreu trombose venosa profunda numa perna — tromboses acabaram por se revelar uma das características mais marcantes da doença. Intubada e imóvel, foi acometida por úlceras de pressão. Estas são lesões na pele que podem chegar até o osso, frequentes em pacientes em longa imobilidade em UTI, mas que parecem ser mais prevalentes na Covid-19. Intriga os médicos saber se isso acontece devido à longa internação ou se há alguma relação específica com o coronavírus.
Em 14 de maio, dona Ruth precisou ser submetida a uma traqueostomia. Depois disso, porém, começou a melhorar e em 28 de maio pode ser transferida para uma enfermaria.
Mas foi só em 13 de junho que dona Ruth pode começar a fazer reabilitação para tratar as sequelas da trombose e das úlceras. Passou a fazer fisioterapia e melhorou significativamente. Em 23 de junho, quase dois meses e meio após a internação, ela recebeu alta.
Porém, o caso não estava encerrado. No fim de julho, ela voltou a ter tosse e febre em um fim da tarde. Numa consulta ambulatorial, realizou um exame de imagem do tórax, que revelou uma espécie de “bola branca” no pulmão, sinal de uma possível infecção por fungos.
Nova internação
Dona Ruth foi internada de novo em 27 de julho. Uma broncoscopia (exame do pulmão) comprovou a suspeita de uma “bola fúngica” por aspergilus. Este é um fungo comum, mas que em pessoas debilitadas pode causar infecção grave.
A infecção pode ser causada por imunossupressão durante o período de internação, uso de múltiplas medicações e antibióticos. O caso mais uma vez chamou atenção porque outros estudos já haviam sugerido que infecções por aspergilus podem ser mais frequentes em pacientes de Covid-19.
Dona Ruth começou a ser tratada para a infecção e melhorou. No entanto, não era o fim dos problemas. Na broncoscopia, os médicos detectaram um estreitamento de traqueia de 70%, provavelmente causado pela intubação por período prolongado.
Ela agora aguarda a realização de nova broncoscopia terapêutica, para dilatar o estreitamento da traqueia. Também passou a apresentar quadro de diabetes após a Covid-19. O mesmo problema já foi identificado em outros pacientes e é sugestivo, segundo estudos internacionais, do acometimento do pâncreas.
— Voltei a ter febre, me sentir mal e aqui estou. Era hipertensa e agora estou diabética também — diz dona Ruth.
Ela ainda não tem previsão de alta, mas mantém o otimismo.
— Para quem passou o que eu passei, estou ótima. Sou otimista. Já consigo sentar numa cadeira sozinha e tenho certeza de que voltarei a andar. Tem que ter fé e esperança. Isso, me sobra — afirma dona Ruth, com o sorriso a torna querida entre profissionais de saúde e pacientes da enfermaria do hospital.
Três mistérios a decifrar
O homem que delirava
Em artigo na revista Brain, Behavior, and Immunity, médicos do hospital da Universidade de Nottingham relatam o caso de um paciente citado como “homem de 46 anos”. Ele procurou o hospital após dois dias de intensa dor de cabeça, seguida de delírios, e sem sintomas respiratórios. Era saudável, mas no momento da internação mal conseguia falar. O exame PCR detectou o coronavírus. Após dois dias de internação, o homem começou a ter febre e convulsões. No sexto dia, foram detectados trombos e inflamação no cérebro. Uma semana depois, ainda tinha dificuldades para falar e falhas de memória.
Duas doenças de uma vez
A edição de agosto da revista científica Plos Neglected Tropical Diseases traz uma descoberta e um mistério. É o caso de um rapaz de 18 anos, das Ilha Reunião, departamento ultramar francês no Índico. Ele estudava em Estrasburgo, epicentro inicial da Covid-19 na França, e voltou para a casa dos pais em Reunião. Em 3 de abril, começou a ter febre, dores de cabeça e fraqueza. No dia seguinte, testou positivo para a Covid-19, mas não foi internado. Em 5 de abril, surgiram vermelhidão e coceira. Ele voltou ao hospital em 7 de abril com dores musculares e falta de ar. Os médicos descreveram o quadro como “ilhas brancas num mar vermelho”, porque apenas ínfimas áreas do corpo permaneciam sem vermelhidão e prurido. Ele também foi testado para dengue, e deu positivo.
Choque no coração
Médicos do Hospital de Massachusetts descreveram na revista New England Journal of Medicine o caso de uma mulher de 44 anos com sintomas de Covid-19, que desenvolveu grave doença cardíaca sem apresentar problemas pulmonares expressivos.